Lais Lima's profile

As senzalas que não ruíram

ESSE NEGÓCIO DE ESCRAVIDÃO

“Aqui não tem trabalhador escravo, não senhora. Aqui é tudo livre”. E seu Adalberto tinha razão. Trabalho escravo não existe no mundo moderno. Esse negócio de escravidão é realmente coisa do passado, de uma época sobre a qual só ouvimos falar ou que lemos nos livros e aprendemos nas tediosas aulas de história do Brasil colonial. Esse negócio de escravidão é da época em que a pele negra era símbolo de condenação, era símbolo de pobreza e de servidão. Um momento aterrador de nossa história, de que deixamos para trás todos os resquícios e com o qual não cultivamos qualquer parecença.

Talvez para muitos seja essa a verdade. Só não para seu Adalberto, que, apesar 
do que dizia para mim – repetidas vezes -, no primeiro dia em que nos encontramos, havia sido, sim, um trabalhador escravo. Solapado na distante Água Preta, município que fica a cerca de 120 quilômetros do Recife, capital de Pernambuco, esse senhor, nascido Adalberto Manoel Domingos da Silva, de 56 anos, poderia passar facilmente por um personagem preso na história. Uma daquelas figuras curiosas de quem só ouvimos falar, mas de que nem se tem registro; um tipo engessado no tempo.

Sentado numa cadeira velha de madeira, em frente à casa de um conhecido com quem trabalhara por alguns anos, sob um piso de terra seca batida e debaixo de um sol escaldante, ele tentava me convencer e explicar como a sua vida era a prova de que trabalho escravo, naquela região e naquela realidade, não existia. Mas eram essas mesmas palavras que só serviam para comprovar para mim aquilo que a aquele senhor tanto queria fazer desacreditar. A insustentável leveza dos seus argumentos eram facilmente levadas pela débil brisa que batia.

Ninguém poderia culpá-lo. Para uma coisa tão velha quanto a própria civilização, haveria de se esperar que a escravidão já estivesse há muito extinta. Era o que ele sabia. Mas, enquanto sentava ali, e rebatia com tanto afinco a ideia de ter sido ele mesmo um trabalhador escravo, seu Adalberto imaginava aquele negro africano, saído quase-morto de um navio “tumbeiro”, destinado à servidão eterna e aos chicotes e correntes que para sempre lhe marcariam a pele. Não. E nesse aspecto aquele trabalhador estava certo. Esse escravo morreu, não existe mais. Foi sepultado sobre o tempo e as cinzas dos papeis que lhe quiseram apagar da história. Restou apenas como figurinha colorida nos livros da escola ou no mito do Zumbi guerreiro que, para alguns, nunca sequer existiu de verdade. Seu Adalberto, porém, existe, só que como filho de outra escravidão. Mais nova, mais sutil e mais mordaz. Dessa que ainda sobrevive. Dessa que, infelizmente, foi (ou é) uma das pouquíssimas coisas que o homem ainda não conseguiu aniquilar.

Quando abandonou o nomadismo dos tempos pré-históricos, a raça humana, frente à descoberta da agricultura e das possibilidades que a fixação à terra podia trazer, começou a estabelecer-se em vilas e comunidades. Agora formavam seus povos, tinham seus costumes e marcavam seus domínios. As lutas por poder e por novas conquistas territoriais, daí então, tornaram-se parte do que podemos chamar de nova racionalidade primitiva de organização sócio-econômica: quanto mais terras, mais comida; quanto mais comida, mais gente; quanto mais gente, mais poder e mais posses. Fechamos o ciclo.
Do resultado das batalhas, obviamente, advinham vencedores e derrotados. Àqueles, restava a glória. A estes, o fim. Os perdedores eram agora espólios, por meio do qual todo aquele ciclo podia começar de novo. “Nada se cria, tudo se transforma”, diria um sábio ainda para nascer. Mais comida, mais terras, mais bens materiais… e mais gente. O progresso era o resultado inequívoco do aniquilamento de uns por outros. Inimigo conquistado virava o que se convencionou chamar de espólio vivo, rapidamente transformado em mão-de-obra servil. A primeira forma conhecida de escravidão nascia ali.

A ideia do trabalho escravo como resultado proveitoso das guerras entre os povos permaneceu bastante popular durante os primeiros séculos da civilização. Egito, Mesopotâmia, Grécia, Roma, todas as grandes cidades-berço a praticaram e prosperaram às suas custas. A diferença era que naquela época não havia cor, credo ou gênero que segregasse livres de não-livres. Submeter os derrotados ao trabalho compulsório – seja eles quem fosses, como se parecesse ou em que entidade cressem -era quase um direito natural e não dependia de nada além de se ter estado do lado errado da briga.

Olhando para seu Adalberto você não precisa saber de toda essa história. Esse homem é filho do negro, do mestiço e do mulato nascidos aqui. É filho dos pretos libertados por dona Isabel de Bragança.  Com suas mãos duras e sujas, a pele torrada de sol, e as feições do rosto tão marcadas quanto os sulcos que por tantas vezes cavou na terra árida, ele é guerreiro derrotado pela própria vida, nascido, criado e adestrado debaixo da sombra da cana. É homem como tantos outros nativos, escravizados em sua própria terra desde o tempo em que o Brasil era Índia. Se alguém, algum dia, pensasse em perguntar para aquele senhor, cuja idade não dava conta das rugas que o rosto estampava, de onde ele tinha vindo, quem eram os seus antepassados que carregaram nas costas o que ele carregava hoje, ele provavelmente não saberia responder. Talvez não porque desconhecesse totalmente esse passado histórico do mundo, mas porque, provavelmente, nunca tivesse se sentido ligado a ele. Do que se conta nos livros, nesses tipos de livros, ninguém quer tomar parte.

À época das Grandes Navegações, os limites do horizonte começaram a se fechar sobre as grandes nações europeias. De repente, tudo parecia pequeno e lento demais para acompanhar os crescimento destes pilares da modernidade. Seus mercados cresciam exponencialmente, sua população se multiplicava e eles se viam almejando um mundo cada vez mais expandido, para muito além do fim do arco-íris e daquela Terra plana.
As primeiras colônias nasceram próximas ao então epicentro do mundo, nas ilhas e cidades africanas. Ao mesmo tempo, a Europa era finalmente apresentada ao cultivo da cana – matéria-prima do tão rentável açúcar – e à exploração da mão de obra negra. Daí para frente, não demorou até que percebessem os benefícios e lucros que poderiam tirar das novas descobertas.

No Brasil, entre seu descobrimento, em 1500, e sua efetiva exploração, 30 anos se passaram. E foram nas extrações de pau-brasil onde primeiro foi introduzida a mão-de-obra escrava na mais nova colônia portuguesa. Começando por aqueles nativos pagãos de pele acobreada, de cabelos negros e corpo forte, que pareciam ser os trabalhadores ideais, nascidos na própria terra em que seriam feitos submissos do homem branco, civilizado e cheio de tralhas para escambo. O que esse homem branco e civilizado não esperava era a resistência. Brasil era terra de índio. E era terra que índio conhecia muito bem. Aquela mão de obra arisca não valia o esforço.

À época, diversas colônias europeias já faziam largo uso da servidão negra. Eles deveriam servir. Importados de várias partes da África, eram transportados já como escravos às dependências portuguesas, espanholas, inglesas e francesas ao redor do mundo. Eram vítimas de sua própria terra primitiva, que continuava fazendo de escravos os povos vencidos pelas disputas tribais. Inimigos na origem, a resistência negra não tinha a força demonstrada pelos indígenas. Não conheciam a terra, tinham sido isolados de suas crenças, famílias e culturas, e muitos nem sequer falavam o mesmo dialeto. Era isso. A escravidão encontrara seu povo.

Seu Adalberto não é negro, nem africano. Não é sudanês ou bantu. Mas foi escravo. Nascido e criado no próprio município de Água Preta, na Zona da Mata Sul pernambucana, onde conversávamos naquele dia, dentro do antigo Engenho Bom Conselho, começou a trabalhar no corte da cana aos dez anos de idade “pra ajudar a família”. Dali em diante, os grilhões invisíveis da escravidão moderna só apertaram. Foram 46 anos passados debaixo do mesmo sol, “torando a cana no talo” e preparando a terra “nas mão”. Narrativa comum aos filhos desse trabalho escravo “contemporâneo” e pós-republicano.

Atualmente, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 21 milhões de pessoas são submetidas a condições de trabalho degradantes no mundo. A América Latina ocupa o terceiro lugar entre as regiões com maior incidência desses trabalhadores, com 1,8 milhão de casos registrados. Apenas Ásia (11,7 milhões) e África (3,7 milhões) ficam na frente, históricos exportadores dessa mão-de-obra que agora a utilizam em seus próprios territórios, terceirizando a escravidão a um mercado global ao qual nunca terão acesso. Novamente, todos funcionando ao bel-prazer das grandes metrópoles intercontinentais.

“É engraçado como são as coisas. Porque antigamente existia o Senhor de Engenho, o capataz e a senzala. E hoje não existe mais isso, não é? Quer dizer, existe. Só os nomes que mudaram”. As proximidades entre o ontem e o hoje podem até ser camufladas, mas não são despercebidas para quem assiste todo dia ao atroz espetáculo da escravidão moderna no Brasil. Evanildo Pereira da Silva, secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Água Preta, um dos responsáveis pelo resgate de seu Adalberto e de tantos outros na mesma situação, é quem o diz.

De 1888 para cá, muita coisa mudou. Mas é possível que Água Preta tenha ficado por lá.
Há 127 anos, uma jovem regente de 42 anos assinava com sua nada modesta caneta, cravejada de ouro, prata e diamantes, a lei que transformaria para sempre o país. Dentre as mais sucintas regulações brasileiras já escritas, na Lei nº 3.535, de 13 de maio de 1888, lia-se apenas, em seus artigos primeiro e segundo: “É declarada extinctadesde a data desta lei a escravidão no Brazil; Revogam-se as disposições em contrário”. Ocupando provisoriamente o lugar do pai, D. Pedro II, como regente do império Português na colônia da américa, a princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Gonzaga de Bragança, popularmente conhecida apenas como Isabel, imaginava ter encerrado e apagado para sempre da história futura do país aquela chaga que nos corroía de dentro para fora.

É quando lembramos que Isabel jaz morta e a escravidão não.

Passados mais de um século de abolição, o trabalho escravo no Brasil – e no mundo – permanece vivo e em movimento. Na agricultura ou na pecuária, escondidos nos rincões do planeta; se aglutinando nas confecções têxteis em países de terceiro mundo ou em plena Avenida Paulista, no centro nervoso de uma das maiores metrópoles do globo; em carvoarias do interior brasileiro ou nos canteiros de obras do próximo grande arranha-céu. A escravidão moderna se espalha como um vírus. Um parasita que vive em retroalimentação: consumindo-se da humanidade e sendo consumido por ela.

Hoje, essa nova escravidão é um carrasco sem olho, que tateia por quem mais baixo está na cadeia alimentar do capital. Não precisa ser forte nem sadio, não precisa ter dente nem dedo, não precisa ser negro, é só ser miserável.

“Na verdade, as condições são, hoje, piores e mais degradantes do que no período colonial, porque o escravo na atualidade só vale como mão de obra e não é mais visto como um ativo de capital, não podendo mais ser comercializado como mercadoria ou matéria-prima de uma cadeia produtiva. Atualmente, são milhares de pessoas, que, tangidas pela fome, miséria e desespero, vão espontaneamente em direção aos grilhões da neoescravidão”, afirma o professor de história Paulo Henrique Mattos, em seu artigo “O trabalho escravo no Brasil: os desafios de uma tragédia anunciada”.

Há casos ainda em que nem se precisa tomar tal direção. É de berço, como o foi para seu Adalberto e tantos outros. Homens que viram os pais serem escravizados e que, sem o saber, tão cruelmente herdaram seu lugar nessas senzalas que não ruíram.

Olhando de longe, aqueles homens da Água Preta de hoje e aqueles um dia escravizados na Água Preta de ontem podem ter suas diferenças. Mas, em uma coisa se equiparam: na necessidade. De comer, de sobreviver, de sustentar suas famílias. Porque, de lá e de cá, em sua maioria, são homens, com idades médias de 32 anos, não-brancos, analfabetos ou semi-analfabetos com apenas quatro anos de estudos. São estatísticas da OIT, de Organizações Não Governamentais e outras entidades que apontam para esse trabalho escravizado pela própria realidade dura e miserável de trabalhadores rurais ou urbanos que veem na renúncia da própria liberdade a única forma de vida possível.

Porque, enquanto houver miséria e fome, enquanto houver ganância e indiferença, enquanto houver impunidade e ausência de justiça, de pé permanecerão as paredes da Casa Grande e da senzala. Sustentando ad infinitum essa neoescravidão, muito menos moderna e muito mais ultrapassada do que se poderia imaginar.

No fim das contas, olhava para aquele homem sentado à minha frente e chegava à seguinte conclusão: seu Adalberto tinha razão. Trabalho escravo não existe, simplesmente, nesse mundo moderno. Não é como antes, quando poucos tinham o privilégio e a riqueza de tê-lo, quando somente alguns dele tiravam proveitos. Não. Agora, ele vai além. É global, barato e velado. Um trabalho escravo que não apenas “existe” no mundo moderno, mas que, a este mundo, sustenta, abriga, veste e alimenta.

Laís.
Esse negócio de gente

Quase 20 quilômetros separavam o posto do local onde o primeiro trabalhador me esperava. Era um pequeno sítio de propriedade dele. Rodeado de outras maiores e, aparentemente, mais prósperas terras, o pequeno sítio de seu Fabiano¹, como a mim se apresentaria mais tarde aquele trabalhador, ao lado da paisagem verde a que me habituara, parecia ser todo feito de barro. Muitos cachorros, dois bezerros já crescidos, algumas galinhas e uma pequena horta, além da casa atrás da igreja – uma das oito -, era tudo o que eu conseguia ver. Adjacente, também havia uma pequena escola municipal, “é pequena mesmo, só tem umas 15 crianças, não sei como ainda não fecharam”, me dizia Evanildo.

Por aquelas bandas, vários pedaços de pau alinhados e enfiados na terra têm um peso maior do que se poderia imaginar. “De lá pra pra cá é meu, daqui pra lá não é”, e essa é a lei da terra. Aqueles pedaços de pau separavam a prosperidade das terras vizinhas da seca que parecia pairar sobre a vida e sobre aquele pedacinho de chão de seu Fabiano.
O esperamos por algum tempo. Na garupa da moto, com o filho, chega e me diz para acompanhá-lo até a casa de outro trabalhador, com quem também iria conversar. Eram 5h30.

Seu Tomás² também não estava em casa. Essa não era hora de descanso, era hora de procurar trabalho. Ou os bicos a que estavam acostumados. E foram nesses momentos de espera que Evanildo, o secretário do Sindicato, primeiro me apresentou à história daqueles dois homens.

Até o ano de 2012, Fabiano José de Lima¹ e Tomás Francisco da Silva² eram trabalhadores empregados. Não que se diga no sentido legal do termo, mas, porque quase que nasceram com um facão na mão e porque tinham um emprego, eram trabalhadores e estavam empregados. Só papel que não havia para comprovar.
Os termos legais se confundem mais uma vez na hora de falar em propriedade. Quem era dono de quê, quem era dono de quem. Mas, quanto ao Engenho Corrientes, onde executavam seus ofícios, a propriedade registrada em cartório pertencia a Marco Antônio Moura de Arruda Falcão. Foi nesse local onde trabalharam por mais de 20 anos e foi nesse local de onde foram resgatados, junto a outros 17 trabalhadores, há três anos³, flagrados em condições análogas à de escravo.

“A gente está sempre em contato com os trabalhadores, não é. E a gente sabe como é que funcionam as coisas por aqui. Quando percebemos que o negócio tava ficando cada vez pior, decidimos tomar providência e fazer a denúncia ao Ministério do Trabalho e Emprego”, me conta Evanido enquanto esperamos seu Tomás.

E a denúncia nem chegava a mencionar o trabalho análogo, segundo o auditor responsável pelo caso. “[A denúncia do Sindicato] Falava sobre algumas irregularidades trabalhistas quanto à saúde e a segurança dos trabalhadores, mas não chegava a enfatizar essa questão do trabalho escravo”, declarou em entrevista Edilberto Medeiros, auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de Pernambuco e chefe da diligência de fiscalização dos casos de trabalho escravo no Engenho Corrientes.
Foi então que as inspeções começaram e o que encontraram ali ia para muito além das meras “irregularidades trabalhistas”. “Existem situações que, de tão comuns, infelizmente, já nem nos surpreendem mais. Quando nós chegamos lá, no entanto, encontramos um cenário que nos deixou bastante estarrecidos”, confessa Edilberto.

As mãos sem luvas, os pés sem botas, os braços sem proteção. As casas sem luz, sem banheiro, sem qualquer estrutura. A sombra, de pano e que só cobria o rosto; a água era numa garrafa de pet reutilizada, mantida fria por estar guardada num buraco cavado no chão. O vaso sanitário era um córrego que passava por trás das casas onde moravam alguns. O chuveiro de se banhar era o mesmo córrego. A pia de lavar louça e roupa era o mesmo córrego. A água de beber dos animais? Era o mesmo córrego.

Estarrecedor.

Foram duas diligências empreendidas. Na primeira, a constatação das condições degradantes em que viviam os trabalhadores. Na segunda, a coleta de depoimentos, a lavratura dos autos de infração, a interdição das frentes de trabalho e a libertação dos empregados. No depoimento dado à ocasião para os fiscais que participaram das ações, seu Fabiano – aquele que conversava comigo, hoje, três anos depois -, disse: “QUE ganha[va] R$ 200,00 por semana, sendo R$ 100,00 em vale e R$ 100,00 em dinheiro; QUE os R$ 100,00 que recebe[ia] em vale somente pode[riam] ser usado[s] para comprar mercadorias no mercadinho da terra, em Campestre/AL […]; QUE quem controla[va] a compra de mercadorias são [eram] os caixas do mercadinho; QUE não pode[ria] comprar os valores pagos em vale aonde [sic] quiser[sse], somente no mercadinho da terra”. A declaração datava de 3 de abril de 2012.

Estamos em outubro de 2015. “Tudo em dinheiro. A gente recebia tudo em dinheiro”, foi a resposta de seu Fabiano à minha pergunta sobre como eram feitos os pagamentos no Corrientes. Nossa conversa não era em juízo, eu não tinha proteção policial e estávamos em terra de seu Marco Falcão. Ele não me dizia o que dissera antes. Não precisava, e sabia que não devia. Seu Tomás já havia chegado e se juntava ao diálogo balançando a cabeça negativamente. Para ele, dizia, era tudo em vale.

“E essa questão do pagamento foi realmente muito decisiva para que fizéssemos a caracterização do trabalho análogo ao de escravo”, afirma o auditor, que tipificou a situação dos trabalhadores como um tipo de escravidão por dívida. “Eles, muitas vezes, precisavam fazer empréstimos para além do que ganhavam porque [o valor do salário] não era suficiente”, relatou.

E cadê o dono disso tudo? No dia 19 de novembro de 2015, conseguimos contato com Marco Falcão, à época dono do engenho e figura responsabilizada pelas autoridades pelo caso de trabalho escravo, mas o empresário não quis se declarar sobre o assunto. Em seu depoimento, no entanto, dado à época das fiscalizações, o proprietário reconheceu a situação das moradias dos trabalhadores, sem banheiro ou água encanada; admitiu que fazia o pagamento não diretamente em dinheiro, mas através de vales do mercadinho; afirmou que oferecia aos trabalhadores os equipamentos de trabalho e de proteção individual, mas que não tinha controle do que era ou não entregue; e ainda confirmou que nunca havia assinado uma carteira de trabalho. Em julho de 2015, o empresário Marco Falcão foi condenado em primeira instância pela 26ª vara da Justiça Federal de Pernambuco. Entre outros crimes, o réu foi enquadrado por desrespeito ao artigo 149 do Código Penal, que prevê reclusão de quatro a oito anos, mais multa, a quem incorre no delito de reduzir uma pessoa à condição análoga à de escravo. A pena estabelecida pela decisão judicial, em regime fechado, foi calculada em 16 anos. O recurso protocolado em segunda instância permanece em análise e o acusado responde ao processo em liberdade.¹

Durante a “diligência de resgate”, da qual participaram, além dos auditores do MTE, agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), foram 19 o número de trabalhadores libertados da situação de trabalho análogo ao de escravo no Engenho Corrientes, além de duas crianças, também encontradas na mesma condição. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Água Preta, entretanto, outros nove trabalhadores também viviam nessas condições, mas não puderam ser localizados durante as fiscalizações.

Por sorte, nós esbarramos com um daqueles nove pelo caminho. “Olha um ali! Esse pode falar pra senhora como era lá”, me dizia Evanildo, de dentro do carro, apontando para aquele homem que vinha caminhando em nossa direção. J. M. S. logo se apresentou. Tinha 58 anos, era casado e com dois filhos. Perguntado, não se importou de dizer que era semi-analfabeto e que trabalhara no Corrientes por 15 anos, “até que aconteceu o que aconteceu”. Quando a segunda diligência dos fiscais estava para se realizar, “seu Marco me chamou e disse: ‘Olha, você não vai participar desse pagode não, viu?’. Eu disse: ‘tá certo’. Aí ele fez um acordo comigo de me pagar oito mil reais. Pagar em três vezes, ainda. […] O que eu sei é que os outros receberam e nós, que saímos no acordo, não vimos foi nada”. Foi a rápida história desse senhor, semi-desconhecido, que me contava tudo com um sorriso no rosto e a enxada apoiada no ombro, indo para um bico que havia conseguido ali perto. Dava graças a Deus pelos três ou quatro reais que conseguiria no corte de 10 m² de cana. Era a alternativa para não morrer de fome.

As narrativas de vida são comuns. Trabalhadores que nasceram do barro e no barro se criaram. Que sabem balançar um facão no meio da cana-navalha muito melhor do que jamais souberam rabiscar com lápis o papel. O passado é duro, o presente é sofrido e o futuro “tá nas mãos de Deus”. São pessoas escravizadas pela necessidade de comer, de sobreviver. Porque esse negócio de escravidão é, mais que tudo, um negócio de gente.
“A gente só quer trabalhar. […] Pra nóis arrumar nosso pãozinho, nóis entrava sem ficha [carteira de trabalho assinada], nóis entrava sem direito, nóis entrava sem nada”. Era a voz dele e do amigo Tomás que seu Fabiano ecoava.

A escravidão é um negócio de gente, porque são alguns que, alimentados pela ganância e certos da impunidade, negociam livremente o capital humano, cada vez mais desvalorizado e cada vez mais vulnerável. A escravidão moderna é o “reino dos fins” de Immanuel Kant. Porque “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade”. Em Água Preta, aqueles trabalhadores eram equivalentes a um prato de comida. Raso.

E Fabiano e Tomás ainda não tinham sequer noção do grau de degradância em que viviam. Quando perguntei ao segundo sobre a situação das moradias no Corrientes, onde viveu por 25 anos, ele me diz: “é… as casa toda vida foram fraquinha…”. Hoje, seu Tomás conta que há dias em que passa a base de água e misericórdia. É o momento em que nos lembramos como leis escritas em pedaços de papel podem não valer muita coisa quando a fome e a necessidade batem à porta.

Depois de retirados das frentes de trabalho, todos os empregados receberam os valores referentes às rescisões de contrato e verbas indenizatórias de que tinham direito. Os montantes foram divididos em parcelas e quitados todos em meados de 2015. O total recebido por seu Fabiano e seu Tomás, alguns dos mais antigos trabalhadores do Engenho Corrientes, girou em torno dos R$ 25 mil. Valor legalmente devido, mas que nem de longe parece compensar as mais de duas décadas “vividas” sob aquelas condições.

Hoje, o dinheiro já não existe mais e trabalho não há que se ache naquela região.
Chegando ao final daquela manhã e me despedindo provisoriamente de Água Preta e seus habitantes, era impossível não olhar para o céu mais uma vez. Meu espírito estava bem mais pesado do que quando cheguei, mas o céu era o mesmo. A lua não estava mais lá e o sol tinha tomado o seu posto de astro maior. Brilhava que só ele. Eram quase 10h. Já na estrada de volta, não conseguia me livrar de um pensamento. Se, tal como a dependência entre essas entidades celestes não permite que uma viva sem a outra, será que a vida resistiria ali por muito mais tempo sem o Corrientes?

Laís.


¹Nome fictício escolhido para proteger a identidade do trabalhador.
²Nome fictício escolhido para proteger a identidade do trabalhador.
³Considerando que esta matéria foi escrita em novembro/dezembro de 2015.
ESSE NEGÓCIO DE DIREITO

“[...] cegos pela alegria constitucional do negro, falavam da escravidão como de um mal tolerável”, Charles Darwin, 1871

Por duas vezes Darwin afundaria os pés nas areias brasileiras. A primeira, em 1832, a segunda, apenas quatro anos depois. Todas, visitas realizadas enquanto fazia sua famosa viagem exploratória à bordo do H.M.S Beagle. Os relatos da viagem, no entanto, só se tornariam conhecidos em 1871, por sua obra “Viagem de um naturalista ao redor do mundo”. Dentre os inúmeros personagens do livro, lá estava o Brasil.

As leis que governavam o país daquele ano, livre de Portugal, mas não inteiramente independente, pareciam estar há anos-luz de distância daquelas, à época, em vigor na Inglaterra, país natal de Darwin, que desde o século 18 já se via livre da escravidão em seu território soberano. Para tanto, não era de se admirar o que o evolucionista registrou sobre o país tupiniquim recém-visitado, que, apesar das riquezas e exuberâncias naturais – tão bem descritas pelo fascinado especialista -, ainda se mantinha preso ao passado, à mão de obra escrava e à monarquia imperialista portuguesa.

A escravidão de hoje talvez não tivesse aterrorizado tanto aquele homem. Até porque, diferentemente daquela, a de agora não se vê à toa, caminhando pela praia, apanhando no meio da praça. Diferentemente daquela, constitucional no Brasil por mais de 300 anos, legitimada por poderes santos e laicos, a escravidão moderna vive hoje às margens da lei, velada a órgãos e autoridades nacionais, camuflada entre normas e convenções de alcance global.

No entanto, para realmente entender o que acontece em pleno século 21, para tentar explicar o como e o porquê da subsistência dessa prática tantos anos após suas mais primitivas aparições, é preciso voltar ao passado de uma escravidão constitucional. Compreender a evolução reversa de uma conduta que, um dia aceita, hoje é consentida, até que se apreendam as possíveis origens da condescendência em que agora vive a sociedade frente à existência e a perpetuação dessa neoescravidão.

Darwin não teria apreciado essa viagem. Mas ele está morto, e nós não.

Para que ninguém comece dizendo que uma nada tem a ver com a outra, que são primas distantes de último grau, em um traçado comparativo simples, pode-se dizer que a velha e a nova escravidão compartilharam, sim, de um mesmo berço - sem serem, no entanto, uma da outra, em nada espécimes mais evoluídos. Nasceram da ganância e das ânsias econômicas de alguns poucos (conquistadores primitivos ou soberanos capitalistas) e chegaram à puberdade sob o julgo dessa mesma classe, que esta mão de obra serviu delegou o progresso e a lucratividade de suas propriedades e capitais. Delegou, apenas. Uma responsabilidade que jamais conheceu contrapartida.

Do primeiro leito comum, a velha escravidão seguiu forte o seu caminho. Foi legalmente amparada, socialmente praticada e religiosamente consentida em todo o mundo durante séculos. No Brasil, por exemplo, até poucos anos após a conquista de nossa independência do domínio português, em 1822, o uso da mão de obra escrava negra manteve-se como prática legal, conforme assim determinavam as Ordenações do Reino – código de direito português que ainda regeria o Brasil até 1824, quando da elaboração da primeira constituição eminentemente nacional.

E, mesmo então, com uma nova carta igualmente monarquista e escravocrata, pouca coisa mudou. E negrinho tinha mesmo é que ficar feliz pelo direito a menos chibatadas. Era só.

Na época, essa era a lei dos homens. Faltava a de “Deus”. Que, em verdade, nem muito era mencionada no negócio todo, uma vez que a escravidão era simplesmente consentida e praticada pelos religiosos, nunca tendo sido legitimamente justificada. De boca, pregavam os eclesiásticos que, primeiro, o índio, e depois, o negro pagão, somente por meio do trabalho compulsório exercido em favor do reino e do cristão branco e civilizado, um dia e com muito esforço expiariam suas faltas e pecados naturais frente ao poder celestial. Uma vez propriamente adestrados, cristianizados, comprados e postos em seus devidos lugares de subserviência, no entanto, qualquer esforço para tentar justificar toda aquela exploração era no mínimo redundante.

E assim seguia o Brasil, que só cortaria os laços com essa velha escravidão em 1888. Mesmo ano em  que uma nova nasceu.

Durante mais de uma hora de conversa, seu Fabiano não mencionou sequer uma vez as palavras “direito” ou “justiça”, “dignidade ou “igualdade”. Se apegava em “Deuzi”, como lhe permitia a sua precária educação rogar a Deus. Mas falou em liberdade, uma vez. “Porque aqui é assim: trabaia quem quer, quem não quer também não trabaia. Porque aqui todo mundo vive liberto.”, me contava ele. “Abaixo de Deuzi, eu digo à senhora: se em Corriente ainda tivesse serviço, todo mundo agora tava comendo alguma coisa. Tava todo mundo empregado. Porque, hoje em dia, só Deuzi”.

Era a liberdade de poder ser escravo que ele pleiteava. Melhor dizendo, a liberdade de trabalhar como quer que fosse, porque era trabalhando que se tinha a liberdade de sobreviver. Porque aquele homem, que muito mal lia e escrevia, não conhecia muito bem desse negócio de direito. E, por mais que o conhecesse, por mais que essa justiça toda existisse mesmo, ela, aparentemente, pouco visitava Água Preta.

O primeiro documento de caráter global a entender o trabalho escravo como prática avessa aos princípios dos direitos humanos (apesar de em 1807 a Inglaterra já ter abolido o tráfico nas colônias britânicas) foi a Declaração Relativa à Abolição Universal do Tráfico de Escravos, elaborada pelo Congresso de Viena, ainda em 1815, que, embora vista como totalmente frustrada e ineficaz em seu próprio século, viria a se configurar como a grande precursora do que se veria dali para a frente.

Depois do primeiro passo e durante todo o século 20, foram várias as convenções e tratados internacionais que versavam sobre a imperiosa necessidade do combate ao trabalho escravo (já considerado) contemporâneo. E essa nova entidade escravocrata, mais adaptável, dispersa e maleável ao também renovado horizonte jurídico de proteção à pessoa humana, se tornava mais e mais reconhecida em caráter global.
Ao longo dos anos, uma série de outros normativos internacionais viria a convergir num grande e legítimo arcabouço legal de luta contra a escravidão.

No que concerne o Brasil, por sua vez, o atraso foi geral e não se deu apenas na abolição da primeira escravidão, em 1888, mas ainda no reconhecimento e no combate desta segunda. Entre a demora em ratificar as Convenções nº 29 e nº 105, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo, que só seriam assinadas pelo País anos após sua elaboração, e o caso José Pereira, vários anos se passariam sem que o Brasil adotasse medidas de combate à escravidão contemporânea e ignorasse por completo a existência do problema.

O gatilho foi (literalmente) disparado quando, no ano de 1989, no Pará, um jovem de apenas 17 anos foi baleado e ferido enquanto tentava escapar da fazenda em que era mantido quase em cativeiro, sob condições análogas à de escravo. Ignorado pelo estado brasileiro, o caso do jovem José Pereira foi levado à corte internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA), que responsabilizou o Brasil pelo caso. Ou ainda, pelo descaso. Mesmo assim, foi somente em 1995 que o País começaria a dar os primeiros passos efetivos para o combate e o reconhecimento da prática.

Hoje (lê-se, pré-Temer), o Brasil é reconhecido pela OIT pelo empenho na luta pela erradicação do trabalho escravo em território nacional. E dentre as mais importantes iniciativas tomadas pelo país estão a criação, ainda em 95, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, convertido em 2003 na Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (tentei acessar o link em maio de 2018; está fora do ar), vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Os grupos atuam tanto na repressão quanto na fiscalização de focos de trabalho escravo em todo o país, sendo formados apenas por autoridades públicas – como MPT, MTE e Polícia Federal - ou por meio de parcerias com entidades de classe e organizações não governamentais.

Em 2003, outro ano marcante para o combate ao trabalho escravo no país, por iniciativa do MTE, também foi posta em prática a criação e a organização da chamada Lista Suja do Trabalho Escravo, que relaciona, a partir de informações colhidas pelas fiscalizações do órgão, uma lista de pessoas físicas e jurídicas flagradas no emprego de mão de obra análoga à de escravo. Importante estratégia de ação preventiva contra a ampliação do uso da atividade escrava em território nacional.

E o trabalho de tais entidades se mantém (se mantinha) firmes e proficientes amparados pelo bastante completo arcabouço legal atualmente em vigor no país: da Constituição Federal de 1988, em seus artigos 1º, 5º e 170º, perpassando o artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CPB), às convenções internacionais ratificadas pelo país.
A viagem termina aqui. Voltamos ao presente. Mas, será possível deixar todo aquele passado para trás? Porque, me pergunto: com o tanto que podem fazer as leis de hoje, porque tanto demoraram a chegar a Água Preta?

Somente em 2012, após mais de 20 anos vivendo sob condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas e servidão por dívida, seu Fabiano e seu João, apenas dois personagens de uma história com milhares de outras vozes, foram, enfim, resgatados. Entretanto, enquanto conversava com aqueles homens, o que me diziam não soava como a alegria de um cativo liberto, o som daquelas vozes em nada se assimilava ao som da liberdade recém-adquirida.

A prova de que o Brasil possui leis suficientes para combater a escravidão contemporânea já foi dada. O resgate de 50 mil pessoas de condições degradantes de trabalho não é feito senão amparado pela legislação nacional e por convenções internacionais já ratificadas pelo país. Mas é na abertura que esse aparato legal oferece às mais variadas interpretações, dizem os que destas tiram proveitos, que mora o verdadeiro problema.

“Na verdade, o arcabouço legal sobre o qual o Brasil se sustenta com relação à definição de escravidão é bastante claro. Quem manipula, quem altera essa verdade dos fatos, ou coloca para a sociedade só a verdade que quer, dizendo que é exagero, que aquilo ali não era trabalho escravo, são as pessoas que querem desmerecer esse trabalho para não serem criminalizadas”, afirma a procuradora do trabalho do MPT em Pernambuco, Débora Tito Farias.

É justamente o que propõe, por exemplo, a regulamentação da tão discutida PEC do Trabalho Escravo, que, pela nova proposta, regurgita o conceito de escravidão um dia aceito, sugerindo a volta da caracterização do trabalho escravo apenas a partir da ótica do trabalho forçado sob ameaça de punição (no tronco, quem sabe) ou com restrição da liberdade pessoal. 

“Quando a bancada ruralista do Congresso não pode mais justificar a não aprovação de tal instrumento, [...] mudou de estratégia e passou a defender a necessidade de regulamentação da PEC, com a alteração do conceito previsto no art. 149 do CP.[...] Assim, se houver a alteração do conceito do crime, a PEC do Trabalho Escravo se tornará mais uma lei “para inglês ver”, declara a juíza do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em Pernambuco, Luciana Conforti.

Isso é a prova de que o reconhecimento e o combate do trabalho escravo moderno perpassa necessariamente todo o tecido social. Das camadas mais altas às mais baixas, das autoridades competentes àqueles que - aparentemente – nada tem a ver com o assunto. Porque, por mais que exista e funcione, por mais que liberte e fiscalize, e por mais abrangente que seja seu alcance, a justiça brasileira não passa de uma moça cega com as duas mãos ocupadas >> será mesmo?.

A escravidão de hoje não incomoda. Não desfila suas agruras em praça pública. Não tem voz nem força. Como seu Fabiano e seu João, vive escondida e silenciosa a pouco mais de uma hora de qualquer lugar do mundo. Porque Água Preta é esse “qualquer lugar do mundo”. É um símbolo da incapacidade da lei de abarcar todos os que estão sob sua tutela. É um fragmento do poder da miséria e da fome sobre a justiça e a liberdade. Água Preta nada mais é do que um apagado reflexo de como esse negócio de direito pode funcionar e de como, porém, a muito mais robusta e obstinada realidade não se curva simplesmente às suas ordens. A escravidão moderna ainda (re)existe e permanece viva abaixo, não de leis – porque estas a condenam -, mas de alguns legisladores medíocres e condescendentes, de uma sociedade que não é vendada por outros, mas que tapa os olhos por si mesma.

“No dia 19 de agosto, finalmente deixamos a costa do Brasil. Eu agradeço a Deus nunca mais ter que visitar um país escravista”. Darwin dera adeus à escravidão como um dia imaginamos também ter o dado há dois séculos atrás. No entanto, é a própria legitimação social (e não a legalização constitucional) dessa escravidão contemporânea, não só aqui, mas em todo o mundo, que lança para longe a falácia de sua inexistência na nossa grande aldeia global. Dito isso, é preciso lembrar de apenas uma coisa: as incorpóreas existências da justiça e do direito se limitam por hiatos e jurisprudências. E não são elas que se vestem, se abrigam e se alimentam dessa escravidão. Somos nós que o fazemos.

(texto originalmente produzido em 2015 - atualizações pendentes, porém sem tempo)
Laís.
As senzalas que não ruíram
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